Antecipar execução da pena viola presunção de inocência, defendem juristas

A notícia abaixo veiculada no site “Conjur” revela a opinião de diversos juristas a respeito da possibilidade de antecipação da execução da pena, prevista na PEC 15/2011. Na sequência da notícia, o Dr. Wolf tece alguns comentários a respeito do tema.

Com a pressa dos envolvidos nas apurações da operação “lava jato” em concluir o caso, voltou ao centro dos debates a possibilidade de se antecipar a execução das penas para depois da decisão da segunda instância. A ideia, defendida recentemente em artigo escrito pelo juiz do caso, Sergio Fernando Moro, e pelo presidente da Associação dos Juízes Federais, Antônio César Bochenek, não é nova. Ela consta na Proposta de Emenda à Constituição 15/2011, apelidada de PEC dos Recursos, — e é duramente criticada pela comunidade jurídica.  

A PEC dos Recursos foi idealizada pelo ministro Cezar Peluso quando ele era presidente do Supremo Tribunal Federal. O foco era antecipar o trânsito em julgado das decisões judiciais para depois do primeiro acórdão de segunda instância. Com isso, os recursos ao Supremo e ao Superior Tribunal de Justiça passariam a ser ações rescisórias, usadas para desconstituir o trânsito em julgado, e não mais ações de apelação. 

Na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o relator da PEC, senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) apresentou uma emenda e mudou o texto da PEC: a proposta passou a estabelecer que mandados de prisão possam ser expedidos já depois da decisão de segundo grau, ou do tribunal do júri, “independentemente do cabimento de eventuais recursos”. A emenda foi aprovada pela CCJ e substitui o texto original da PEC. 

Antecipar a execução é uma saída posta para dar celeridade à jurisdição criminal e evitar o abuso das decretações de prisões preventivas. O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, defende que “é preciso ajustar a lei penal ao mundo real”. Ele entende que é a demora na prestação jurisdicional que encoraja juízes a se arvorar no papel de combatentes do crime e mandar prender réus antes da condenação. 

Mas alguns dos colegas dele discordam. O ministro Celso de Mello, decano do Supremo, considera a medida “inaceitável, insuportável, um retrocesso inimaginável”. Para ele, aprovar a execução antecipada “significa extinguir a presunção de inocência”.

O ministro Marco Aurélio, vice-decano da corte, reconhece o problema da a morosidade da Justiça, mas afirma que a solução é “afastar a morosidade para ter a culpa formada e o princípio da presunção de inocência mantido”. “Não vejo como ter-se no campo penal uma execução que não seja definitiva, já que ninguém devolve ao absolvido a liberdade que se tenha perdido. Ele entrará com ação indenizatória contra o Estado? Temos que cuidar desse problema da máquina judiciária.” 

Realidade brasileira 

O “mundo real” a que o ministro Gilmar Mendes se refere é a concessão inadvertida e indiscriminada de prisões provisórias. É o que mostra estudo conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Departamento de Política Penitenciária do Ministério da Justiça (Depen) divulgado no fim de 2014, com base em dados de 2011. 

A conclusão da pesquisa é que, no Brasil, só é processado quem foi preso em flagrante e só é condenado quem já estava preso. O levantamento diz que 65,5% das denúncias recebidas pelo Judiciário tratavam de inquéritos abertos depois de flagrante. Em 87% dos casos, o réu já estava preso. Nos inquéritos abertos por portaria, a proporção de denúncias aceitas com o réu já preso cai para 12,3%. 

E quando se trata da condenação, as cifras são parecidas: 63% dos réus que cumpriram prisão provisória foram condenados a penas privativas de liberdade e 17% foram absolvidos. Isso mostra que 37% dos réus que foram submetidos à prisão provisória não foram condenados a cumprir pena atrás das grades. Receberam penas restritivas de direitos e medidas alternativas ou a decisão foi pelo arquivamento do caso ou pela prescrição da pretensão punitiva. 

“Ou seja, o fato de que praticamente quatro em cada dez presos provisórios não recebem pena privativa de liberdade revela o sistemático, abusivo e desproporcional uso da prisão provisória pelo sistema de Justiça do país”, conclui o estudo. 

Constituição brasileira 

Já foi permitida no Brasil a execução provisória das penas. A Lei 8.038/1990, no parágrafo 2º do artigo 27, estabelecia que os recursos ao Supremo e ao STJ têm “efeito devolutivo”. Ou seja, podem reformar uma decisão judicial, mas não suspendem seus efeitos. 

Em março 2009, no Habeas Corpus 94.408, o Supremo entendeu que esse dispositivo não se aplica à área penal, pois isso significaria antecipar os efeitos de uma decisão ainda não transitada em julgado. Foi declarada a “inconstitucionalidade da chamada execução antecipada da pena” por violação ao princípio da presunção de inocência. 

O ministro Rogério Schietti Cruz, do STJ, entende que a decisão do Supremo é “incontornável” dentro da “realidade constitucional brasileira”. Estudioso do assunto, ele acredita que, enquanto a Constituição Federal disser que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, como está no inciso LVII do artigo 5º, não há como se falar em antecipação da execução da pena. 

A proposta de Schietti é que se dê nova redação ao princípio da presunção de inocência, justamente para desatrelá-lo do trânsito em julgado. Segundo ele, o Brasil é dos poucos países que trata da presunção dessa forma. “Geralmente, colocam a presunção de inocência atrelada à comprovação da culpa, ou que todos são inocentes até que se prove o contrário. Em nenhum diploma se inseriu o trânsito em julgado.” 

Julgar mais 

O advogado Pierpaolo Cruz Bottini é mais direto. Para ele, a emenda à PEC é inconstitucional. Bottini é doutor em Direito Penal pela USP e é professor da disciplina na universidade. Ele analisa que é cláusula pétrea o dispositivo da Constituição segundo o qual uma pena só será executada depois do trânsito em julgado. Ele concorda com Marco Aurélio: “Em casos cíveis ou patrimoniais, é possível restituir o bem apreendido inclusive com juros. Mas é complicado permitir a execução provisória porque não tem como voltar atrás. Como é que se restitui a liberdade?”. 

Na opinião de Bottini (foto), “se é para agilizar a Justiça, que seja julgando”. “Conferir eficiência ao Estado prejudicando direitos fundamentais nunca é a melhor forma de estruturar o Estado Democrático de Direito.” 

O advogado Aury Lopes Jr, professor de Processo Penal da PUC do Rio Grande do Sul, concorda com Celso de Mello: antecipar a execução é um retrocesso. “O Supremo colocou a presunção de inocência onde ela deveria estar com o HC 94.408. Já passamos por isso, por que retroceder?” 

Na opinião dele, se o problema é a demora no julgamento, seria mais interessante aumentar a estrutura do STJ, maior gargalo jurisdicional da atualidade. "Quando se determina o imediato ingresso no cárcere sem 'cautelaridade', existe uma equiparação ao tratamento dado ao condenado, pois estamos colocando alguém para 'cumprir uma pena', em situação igual àquela do condenado definitivo. E isso é uma antecipação da pena, absolutamente inconstitucional e inconvencional. Um grave retrocesso civilizatório.” 

O presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), Leonardo Sica, concorda com Aury Lopes. Segundo ele, “a proposta é descabida e oportunista, um retrocesso autoritário". A aprovação de uma medida como essa, avalia Sica, "representará a aniquilação de garantias individuais duramente consolidadas na história do país". "O esforço de gerações de brasileiros comprometidos com a democracia e o Estado de Direito serão desprezados." 

Pedro Canário

Comentários do Dr. Wolf

Não há como negar que o dispositivo que trata da execução da pena apenas após o trânsito em julgado revela um direito fundamental. Isso porque, além de estar sistematicamente expresso na Constituição na parte dos direitos fundamentais (art. 5º, LV), versa sobre matéria pertinente aos direitos fundamentais – a liberdade do indivíduo; dessa forma, resta evidente trata-se de cláusula pétrea e, portanto, imutável dentro da ordem constitucional vigente, como afirmado por juristas na notícia supratranscrita.

Diante dessa premissa, como pode a proposta de emenda legislativa, sob a alegação de beneficiar a eficiência do Judiciário, ser defendida? Ora, a crítica no Direito se dá pela lei; a crítica pela eficiência serve à economia. Parece-me que a proposta é equivocada em todos os aspectos e, especialmente, subverte a base fundamental do Direito, qual seja, a proteção ao núcleo de um dos direitos fundamentais mais importantes – a liberdade.

Em sede de análise para inconstitucionalidade da questão, basta observar os argumentamos acima expostos. Mas o grave erro dos que sustentam a necessidade da mudança legislativa não para por aí. Isso porque, os defensores da execução antecipada da pena alegam a impossibilidade de vincular a presunção de inocência aos efeitos dos recursos, como afirma o Juiz federal Sérgio Moro em artigo publicado na internet:

 “É equivocado relacionar presunção de inocência com efeitos de recursos, pois o princípio está vinculado à questão probatória, no sentido de se exigir prova robusta, acima de qualquer dúvida razoável para condenação criminal.”. (MORO, Sérgio. Ineficácia da aplicação da lei).

Nos termos delineados por Moro, a presunção de inocência se esgota com a primeira decisão desfavorável ao réu. Ora, essa constatação é aviltante tendo em vista o contexto constitucional vigente no país, uma vez que o duplo grau de jurisdição visa proteger justamente a possibilidade recursal, impedindo a formação da coisa julgada até segunda decisão.

Ademais, em sede de exame principiológico, a PEC 15/2011, chamada PEC dos Recursos esbarra numa ponderação realizada através do preceito da proporcionalidade. A proposta é desde logo inadequada, por haver outros meios de tornar o Judiciário mais “célere, mas eficaz e, por esses motivos, igualmente mais justa”, como pretende o juiz Moro. Isso porque, para além do exemplo citado na notícia, de que os Juízes julguem mais e de que a estrutura do STJ seja maior, cabe mencionar a quantidade de processos que seriam “barrados” pelo principio da insignificância, caso adotado com maior frequência pelo Judiciário. Essa é, ainda, uma forma expansiva dos direitos fundamentais dos indivíduos, e não restritiva, como pretende a péssima proposta legislativa. Como exercício argumentativo, cabe, ainda, ressaltar que a proposta é desnecessária, por “dar um passo para frente” em direção à celeridade e eficiência no Judiciário, mas “três passos para trás” no sentido de violar preceito de proteção ao direito fundamental estampado na Constituição.

A discussão está posta e merece atenção dos três poderes e da sociedade. Mesmo porque, para todo problema complexo há uma resposta simples, que está errada. E sendo errada, deve ser derrubada por argumentos a altura do problema.