PARTE I – DOUTRINA

1. O vício transrescisório

À luz do ensinamento de LIEBMAN (in Estudos sobre o Processo Civil Brasileiro), “a falta de citação inicial é o maior de todos os vícios do processo e é o único caso que sobrevive nos nossos dias em que todo e qualquer processo é adequado para constatar e declarar que um julgado meramente aparente é na realidade inexistente e de nenhum efeito.

A nulidade pode ser alegada em defesa contra quem pretende tirar da sentença um efeito qualquer; assim como pode ser pleiteada em processo principal, meramente declaratório”.

Assim é que, em sendo o caso, a desconstituição da sentença eivada de vício transrescisório dar-se-á mediante a ação de querela nullitatis, ação de nulidade com hipótese de cabimento restrita, além de ser imprescritível, devendo ser proposta perante o juízo que proferiu a decisão. 

Nas palavras de DIDIER JR., “no direito processual brasileiro há duas hipóteses em que uma decisão judicial existente pode ser invalidada após o prazo da ação rescisória. É o caso da decisão proferida em desfavor do réu, em processo que correu a sua revelia, quer porque não fora citado, quer porque o fora de maneira defeituosa (art. 475-L, I e art. 741, I, CPC). Nestes casos, a decisão judicial está contaminada por vícios transrescisórios.” (DIDIER JR., Fredie, CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil, vol.3, 9ª ed. Salvador: Editora Juspodvim, 2008, p. 455, 456 e 457). 

As hipóteses apontadas por DIDIER JR. para a configuração dos chamados “vícios transrescisórios” são taxativas: referem-se tão e unicamente a falhas na citação do réu. 

Em primeiro lugar, quando falamos de vícios transrescisórios, em verdade, estamos falando de apenas um vício. Isso porque, o único vício que há é a falha na citação do réu, seja pela inexistência da citação, seja pela forma defeituosa da citação. Dessa forma, não há que se falar em vícios, mas apenas em um único vício, devendo esse estar relacionado com a citação do réu.

Em segunda análise, é importante atentar para a natureza do vício transrescisório. Note-se que se a sentença for favorável ao réu que não foi citado, a invalidação não será possível por carecer de prejuízo que dê azo à ação em questão. Também é importante perceber que, se o réu, apesar de não ter sido citado ou se citado de maneira defeituosa, não for revel por ter comparecido espontaneamente, não caberá a querela nullitatis.

O vício transrescisório somente é conhecido de ofício quando, ao final do processo, constata-se ausência de citação porque o processo ficou sem uma das partes, o Réu. A ausência de citação faz com que a relação triangular que forma o processo não se estabeleça por ausência de uma das peças fundamentais: o Réu. Esta relação é formada por Autor, Juiz e réu.

A única forma de rescindir a coisa julgada é através de Ação Rescisória. Vício transrescisório proclamado de ofício só quando existir falta de citação. Não há vício transrescisório por falta de intimação de algum ato processual, menos ainda conhecido de ofício: passados dois anos de prazo para o exercício da pretensão rescisória, dá-se o fenômeno da coisa soberanamente julgada, não mais modificável, qualquer que seja o motivo alegado pelo interessado.

A não observância no julgado a esta parte o torna nulo de pleno direito. Não é possível reconhecer de ofício nulidade que não é absoluta e que, se existisse, deveria ser alegada pela parte que se sentisse prejudicada para que a intimação fosse refeita e a parte tivesse a oportunidade de praticar o ato que entendeu e demonstrou ter lhe prejudicado. Caso a demonstração de prejuízo não se fizesse, incidiria o brocardo francês Pas de nulitté sans griff.

Afirma De Lucca (DE LUCCA, Rodrigo Ramina. Querela Nullitatis e réu revel não citado no processo civil brasileiro. Revista de Processo. 2011, vol. 202., p. 130 e 134) que a sentença transitada em julgado, após findo o prazo de dois anos para propositura de ação rescisória, deixa de ser nula e não pode mais ser desconstituída. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Roque Komatsu (1991, p. 245) pondera que as nulidades absolutas passadas em julgado, convalidam-se, não podendo mais ser decretada a nulidade do ato defeituoso, e ainda, passado o prazo para rescisória, os vícios não podem mais conduzir a invalidade do ato.

É certo que a jurisprudência do STJ admite a ação de nulidade de sentença (querela nullitatis insanabilis) quando inexistente citação, já que, nesse caso, a decisão singular estaria contaminada por vício transrescisório, não permitindo a ocorrência do trânsito em julgado (Resp n. 1.015.133/MT, relatora Ministra ELIANA CALMON, relator para acórdão Ministro CASTRO MEIRA, 2ª Turma, DJe 23/04/2010, entre outros).

A força que decorre do vício transrescisório não pode ser simplesmente “passada” como se fosse um vírus para outras questões de Direito que não aquelas das duas hipóteses previstas em lei de falha da citação, isto é, a inexistência ou imperfeição da citação. Da mesma forma que a ação rescisória tem as hipóteses de cabimento elencadas taxativamente no art. 485, do CPC, a revisão do julgamento para anulação da coisa julgada deverá observar os parâmetros igualmente taxativos dos arts. 475-L, I e art. 741, I, CPC, antes mencionados.