A qualificação dos atos produzidos após a coisa suprema julgada
Como devem ser tratados esses atos?
Na série anteriormente publicada nesta seção, abordamos o tema do desafio à coisa supremamente julgada, relacionando-a com a corrupção dos homens de Sodoma.
Apresentado o tema, concluímos que aquelas decisões que venham porventura a modificar o conteúdo ou a forma da estabilidade provocada pela res iudicata devem ser repelidas do ordenamento jurídico e combativas com veemência pelos operadores do direito.
Todavia, tal como D’us enviou seus anjos disfarçados de estrangeiros para destruir a perversidade dos homens de Sodoma, cabe a nós agora enfrentar a questão de atos produzidos depois de o feito ter atingido a coisa suprema julgada.
Nesse sentido, pergunta-se: se as decisões que superam a coisa suprema julgada devem ser repelidas, como devem ser considerados os atos para discutir questões que a coisa supremamente já resolveu e foram purgadas pela coisa Julgada?
Devem ser considerados nulos? Ineficazes? Ou Inexistentes? Para responder essa pergunta recorreremos à Teoria das Nulidades, ou “escada pontiana”, como ficou conhecida essa teoria a partir da célebre lição de Pontes de Miranda .
Antes, contudo, é preciso fazer uma ressalva importante: no direito processual, não há defeito que não possa ser sanado. Inclusive, há autores que afirmam que mesmo nos casos de ausência de citação ou de citação defeituosa que gerou revelia, os chamados vícios transrescisórios, há possibilidade de suprimento do defeito pelo comparecimento do réu ao processo .
Para PONTES DE MIRANDA, inclusive, se o réu, citado/intimado regularmente na execução da sentença proferida em processo com tal defeito, comparecer e não o apontar, sanado está o vício, pela preclusão .
Logo, o estudo da coisa julgada revela-se ainda mais importante.
Assim, da mesma forma que a Torá tem a força de nos guiar e iluminar em momentos cinzentos e de trevas, devemos em momentos como esse recorrer aos sensatos e perspicazes doutrinadores e sérios magistrados para enfrentar essa importante questão dos atos produzidos depois do feito ter atingido a coisa julgada.
A coisa julgada, é bom lembrar, é resultado da definição da relação processual e, por essa razão, é obrigatório para seus sujeitos . Nesse sentido, ao se identificar a coisa julgada com a eficácia declaratória da sentença, revela-se que a coisa julgada é uma qualidade que aos efeitos se ajunta para torná-los imutáveis .
Sob o argumento da imutabildiade da situação jurídica concreta, Barbosa Moreira afirma que “a regra concreta formulada pelo juiz deve permanecer imutável” .
Analisada a doutrina, vemos que entre os atos produzidos depois do feito ter atingido a coisa julgada, o único admissível, e em condições especiais (havendo vícios rescisórios), é a Ação Rescisória.
Vencida essa fase, atingindo o feito a coisa supremamente julgada, não existe a possibilidade prática de quaisquer outros atos que não sejam ligados ao cumprimento do julgado (atos de Execução), razão pela qual os demais atos devem ser descartados sem maiores formalidades.
Veja-se que essa é a ratio da jurisprudência, igualmente, quanto aos atos produzidos depois de imutável a situação jurídica concreta, através da regra formulada pelo juiz.
Nesse sentido, colacionamos a ementa referente à Acórdão sobre o descabimento da querela nullitatis para impugnar partes da sentença albergadas sob o manto da coisa julgada, a fim de fixar e melhor esclarecer o tema da presente análise:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. BASE DE CÁLCULO. INOBSERVÂNCIA DO ART. 20, § 3º, DO CPC. TRÂNSITO EM JULGADO. VÍCIO DE NATUREZA RESCISÓRIA. DESCABIMENTO DA QUERELA NULLITATIS. ERRO MATERIAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL. DESCARACTERIZAÇÃO. 1. É possível, de modo excepcional, o controle de nulidades processuais, sobretudo as de natureza absoluta, após o trânsito em julgado da decisão por meio de impugnações autônomas, como embargos à execução, ação anulatória (querela nullitatis) e ação rescisória, cabíveis conforme o grau de nulidade no processo originário. 2. A querela nullitatis é instrumento utilizado para impugnar sentença contaminada pelos vícios mais graves de erros de atividade (errores in procedendo), nominados de vícios transrescisórios, que tornam o ato judicial inexistente, não se sanando com o transcurso do tempo. 3. Se a insurgência é contra a parte da sentença que fixou a base de cálculo dos honorários advocatícios sem observar os ditames do art. 20, § 3º, do CPC, o vício é de caráter rescisório, de modo que o instrumento processual adequado é a ação rescisória, apta a discutir a existência de violação literal de dispositivo de lei. 4. O equívoco no arbitramento da verba honorária não é considerado erro material, pois somente os desacertos numéricos cometidos quando da elaboração da conta caracterizam esse vício. Logo, os critérios de cálculo utilizados quanto aos honorários advocatícios estão protegidos pela coisa julgada. A ausência de impugnação tempestiva da base de cálculo fixada atrai a aplicação do brocardo jurídico dormientibus non sucurrit jus (o direito não socorre aos que dormem). Precedentes. 5. Não havendo vício transrescisório ou eventual coisa julgada inconstitucional, mas vício rescisório, descabida é a querela nullitatis. 6. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp 882.992/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/10/2016, DJe 14/11/2016).
Em nossa opinião, portanto, afirmamos com convicção de que, ao se atingir a coisa suprema Julgada, não sendo o vício rescindível, somente se praticam atos de Execução do Julgado.
Nesse sentido, podemos responder à pergunta anteriormente feita: os atos posteriores à eficácia preclusiva da coisa julgada devem ser tomados como inexistentes.
A fonte dessa afirmação está em Pontes de Miranda, que no seu Comentários ao Código de Processo Civil, advertia sobre a necessidade de se distinguirem as decisões inexistentes, rescindíveis (válidas, mas atacadas por ação rescisória, a despeito da coisa julgada) e nulas, que, embora existentes, não valem e podem ser desconstituídas a qualquer tempo .
Ainda, quanto às rescindíveis, transcorrido in albis o prazo decadencial para a propositura de ação rescisória, a decisão judicial, por mais defeituosa que seja, não mais poderá ser desfeita .
Na análise da jurisprudência, verificou-se que apenas uma hipótese os vícios podem ser tais que a coisa suprema julgada pode ser desafiada, para além dos casos de decisões rescindíveis. É o caso do vício transrescisório para ausência ou citação inválida do Réu.
Isso pode ocorrer, por exemplo, na ausência de citação para qualquer ato processual, igualmente, por se tratar dos pressupostos de constituição do processo .
Nesse sentido, encontrou-se a seguinte jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA.
SÚMULA 211/STJ. ARGUIÇÃO DE NULIDADE DA CITAÇÃO. PRECLUSÃO.
INOCORRÊNCIA.
1. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados, não obstante a interposição de embargos de declaração, impede o conhecimento do recurso especial quanto ao ponto.
2. Os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo, assim como as condições da ação - matérias de ordem pública -, não se submetem à preclusão nas instâncias ordinárias.
3. A nulidade da citação constitui matéria passível de ser examinada em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de provocação da parte; em regra, pode, também, ser objeto de ação específica ou, ainda, suscitada como matéria de defesa em face de processo executivo. Trata-se de vício transrescisório. Precedente.
4. O defeito ou a ausência de citação somente podem ser convalidados nas hipóteses em que não sejam identificados prejuízos à defesa do réu.
5. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp 1138281/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/10/2012, DJe 22/10/2012)
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE CITAÇÃO. CABIMENTO.
1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela parte.
2. Consoante a jurisprudência consolidada nesta Corte Superior, a nulidade da citação constitui espécie de vício transrescisório e, por isso, pode ser reconhecida a qualquer tempo, até mesmo após o escoamento do prazo para a propositura da ação rescisória, mediante simples alegação da parte interessada.
3. A ação declaratória de nulidade é via adequada para alegar vício ou ausência de citação. Precedentes.
4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 408.703/CE, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/11/2015, DJe 13/11/2015).
Em suma, não se tratando de vício transrescisório (ausência de citação ou citação inválida), é inviável o processamento da querela nullitatis, estando os efeitos da sentença protegidos pela coisa julgada.
Atos e decisões produzidos após a coisa supremamente julgada são inexistentes, não se confundindo com as decisões rescindíveis, nem com as decisões nulas.
Todavia, se apesar da coisa julgada essas decisões vierem à tona, devem ser enfrentadas, eis que inexistentes, evitando gerar a insegurança jurídica e tornar infindável processo.
Eis o que havia para o momento.
Wolf Gruenberg
Advogado