Desconsideração da Personalidade Jurídica e o Fim da Responsabilidade Limitada no Brasil

O tema da responsabilidade limitada é um dos mais caros ao direito empresarial, pois representa uma das garantias mais concretas à mitigação do risco.

Essa mitigação é fundamental para o fomento da atividade empresarial, na medida em que, ao ver seu patrimônio protegido, sabendo que seu risco está limitado ao aportado, o empresário pode medir quais atitudes tomar na condução do seu negócio.

Nessa toada, o final desse ano reservou boas novas no que toca à proteção da limitação da responsabilidade do empresário e de terceiros.  

Em primeiro lugar, citamos um livro que, embora lançado recentemente, já pode ser considerado um clássico pela originalidade e consistência com que apresenta seus argumentos e defende sua tese. O Fim da Responsabilidade Limitada no Brasil, do Professor de Direito da FGV/SP, Bruno Salama, é daqueles livros que demonstram a vocação de jurista do autor. Isso porque, além de enunciar o problema da flexibilização da responsabilidade limitada, o Prof. Salama também “tenta resolvê-los doutrinariamente”. Em seguida, teceremos nossa opinião sobre o livro, com uma análise dos principais pontos, bem como críticas e sugestões ao autor.

Em segundo lugar, transcrevemos a notícia abaixo retirada do site Migalhas na tarde de ontem a respeito de decisões que consideraram insuficiente a dissolução irregular da empresa para desconsiderar a personalidade jurídica de sócios.

Notícia: Dissolução irregular não é suficiente para desconsideração de personalidade jurídica

A mera demonstração de insolvência da pessoa jurídica ou de dissolução irregular de empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica. Nos termos da teoria adotada pelo CC, é a intenção ilícita e fraudulenta que autoriza a aplicação do instituto.

Com esse entendimento, a 2ª seção do STJ dirimiu nesta quinta-feira, 10, divergência de entendimentos da própria Corte quanto à cessação irregular das atividades empresariais como causa suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica.

Para o colegiado, que seguiu à unanimidade a relatora, ministra Isabel Gallotti, a simples insolvência ou dissolução, "ainda que irregular, da sociedade não são suficientes para a invasão patrimonial dos sócios".

Os autores opuseram embargos de divergência em face do acórdão proferido pela 3ª turma da Corte, de relatoria do ministro Massami Uyeda, proferido nos autos do agravo regimental no REsp 1.306.553/SC, o qual deu pela dissolução irregular da sociedade empresarial como causa bastante para a desconsideração da sua personalidade jurídica.

Conforme alegam, a decisão embargada diverge do REsp 1.098.712/RS, de relatoria do ministro Aldir Passarinho Junior, proferido no âmbito da 4ª turma, cujo acórdão paradigma traz como requisito o abuso de sua personalidade, que é verificado mediante o desvio de sua finalidade institucional ou a confusão patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios ou administradores.

Os recorrentes pediam para fosse afastada a desconsideração da personalidade jurídica determinada pelo acórdão embargado, ao confirmar decisão do relator que deu provimento ao recurso especial, e que fosse restabelecido o acórdão do TJ/SC, com tese em sentido contrário.

"Esta Corte Superior já teve a oportunidade, mais de uma vez, de apreciar a questão, apontando a teoria maior como sendo aquela adotada pelo Código Civil, de modo que se exige a configuração do abuso de direito mediante o desvio de finalidade social ou confusão patrimonial entre sócios e sociedade", salientou a relatora.

Segundo a ministra, para a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade social, exige-se o dolo das pessoas naturais que estão por trás da sociedade, desvirtuando-lhe os fins institucionais e servindo-se os sócios ou administradores desta para lesar credores ou terceiros.

Assim, conforme destacou a relatora, a ausência de intuito fraudulento ou confusão patrimonial afasta o cabimento da desconsideração da personalidade jurídica, "ao menos quando se tem o Código Civil como o microssistema legislativo norteador do instituto, a afastar a simples hipótese de encerramento ou dissolução irregular da sociedade como causa bastante para a aplicação do disregard doctrine".

"Não se quer dizer com isso que o encerramento da sociedade jamais será causa de desconsideração de sua personalidade, mas que somente o será quando sua dissolução ou inatividade irregulares tenham o fim de fraudar a lei, com o desvirtuamento da finalidade institucional ou confusão patrimonial."

 

Opinião Dr. Wolf

Com a flexibilização da responsabilidade limitada no Brasil, nos encontramos hoje num extremo de inexistência dessa proteção na prática, o que acaba nos colocando diante de três problemas. 

Em primeiro lugar, problemas de custos econômicos: o esgarçamento dos mecanismos societários de proteção à responsabilidade limitada praticamente inviabiliza a atividade empresarial, pois gera um desincentivo àqueles que pretendem abrir seus negócios por conta dos riscos que são colocados em jogo. O exemplo mais marcante são problemas enfrentados pelo BNDES quando deseja fazer investimento de private equity em pequenas empresas no Brasil e não consegue, tendo em vista o risco de ver o Estado devedor.

Segundo, há um dano à operabilidade do Direito. Isso porque nós temos um grande “laranjal” no Brasil, no sentido de que todos os negócios estão migrando para as mãos de “laranjas”. Não somente os pequenos negócios, mas também os grandes. Isso acontece porque o sócio deseja a responsabilidade limitada, mas por não conseguir, o negócio vai migrando para a mão de laranjas. Isso é um problema muito grave, na medida em que atrapalha a operabilidade do sistema jurídico, uma vez que o que está no papel vai se distanciando do que existe na prática. E aí começa a surgir esse estranhamento diante do Direito: o que é o Direito? Essas ficções maravilhosas construídas por professores e advogados sofisticados que não espelham nada da realidade do mundo? Esse é um sintoma do fim da responsabilidade limitada. 

Terceiro grave problema: dano à legitimidade política do direito. Porque quando legítimas expectativas dos sujeitos não podem ser atendidas em arranjos jurídicos que funcionam, a legitimidade política do Estado de Direito está em questão. 

Em última análise, se por um lado o Direito é técnico, o Direito também é valor. E dentro desses valores, a livre iniciativa é um valor um tanto esquecido no Brasil nos últimos anos. Se nós formos dar certo enquanto nação, será em boa medida da quebra de um bloqueio que existe entre ordem política e ordem econômica no Brasil. Me parece que o caminho possível pra isso é o do empoderamento do indivíduo e do cidadão. Nesse sentido, a defesa do empreendedorismo é um pedaço importante desse percurso que nós esperamos para o Brasil.