O debate acerca da imunidade do livro eletrônico é tema central na atualidade do Direito brasileiro. 

Doutrinadores de grande expressão manifestam-se, apresentando diferentes argumentos, sobre a imunidade ou não do livro eletrônico. Por essa razão, comento a seguinte notícia, referente à decisão do TRF-3 que não estendeu a imunidade tributária do livro de papel para um tipo de equipamento comparado a um livro eletrônico. 

Leitor de livros digital não goza da mesma imunidade do livro de papel 

Os leitores de livros digitais (“e-readers”) não podem ser comparados aos livros de papel e, portanto, não podem gozar de mesma imunidade tributária. Com esse fundamento, a Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) negou provimento a recurso da empresa S. e S. S/A que pretendia a liberação de equipamentos eletrônicos do modelo Bookeen Lev com luz, retidos pela Receita Federal, sem a exigência do recolhimento dos impostos federais incidentes na importação.

O acórdão, publicado em 27 de janeiro no Diário Eletrônico, afirmou que a extensão da imunidade de impostos sobre "livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão" – imposto de importação e imposto sobre produtos industrializados – não podia ser aplicada aos equipamentos do modelo importado, conforme o artigo 150, inciso IV, letra "d", da Constituição Federal (CF).

“Verifica-se, que (além de leitor de textos) o equipamento serve como arquivo de fotografias ou biblioteca de imagens, que podem ser transferidas por conexão USB, ultrapassando a funcionalidade estrita de livro eletrônico, em relação ao qual seria possível cogitar de extensão da regra de imunidade”, relatou o desembargador federal Carlos Muta.

A empresa havia obtido em primeira instância a concessão parcial de liminar, em mandado de segurança, que apenas havia determinado à União Federal (Fazenda Nacional) que se abstivesse da prática de qualquer ato tendente ao perdimento ou alienação dos leitores de livros digitais retidos no Aeroporto de Guarulhos, enquanto não houvesse decisão nos autos.

A S. e S. S/A alegava se tratar de equipamento com finalidade exclusiva de leitura de livros digitais e acesso restrito à loja virtual através de acesso "wi-fi" à internet para aquisição de obras, gozando da imunidade do artigo 150 da CF. “O objetivo, independentemente de ser físico ou eletrônico o meio, é estimular a liberdade de expressão, afastando restrições do poder público na transmissão de ideias”, defendia.

Para os magistrados, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) se consolidou, em geral, no sentido de reconhecer que tal imunidade atinge apenas o que puder ser compreendido na expressão papel destinado à sua impressão, com extensão a certos materiais correlatos, como filmes e papéis fotográficos, adotando, portanto, interpretação restritiva do dispositivo constitucional.

“A discussão definitiva da imunidade de "e-books" (livros digitais) ainda pende de julgamento naquela Corte (STF) que, porém, já admitiu a repercussão geral da matéria (RE 330.817), o que não significa reconhecimento da procedência nem da improcedência do pedido, mas apenas que se trata de tema com relevância para apreciação naquela instância”, descreve o acórdão.

Para o desembargador federal relator Carlos Muta, independentemente da solução a ser dada pelo STF quanto à questão jurídica em si, verifica-se que, no caso dos autos, inexiste direito líquido e certo a ser liminarmente tutelado, já que o aparelho, em questão, embora não garanta acesso à internet, mas apenas à loja virtual da impetrante, não se equipara, em termos funcionais estritos, ao livro em papel, pois possui atributos outros, que o fazem ser mais do que apenas uma plataforma eletrônica de leitura de livros digitais.

“De fato, consta dos autos que, além de livros eletrônicos, o aparelho permite armazenar imagens não relacionadas a conteúdos escritos, como fotos, para visualização sem a necessidade de inserção de texto... Consta do manual de instruções acesso exclusivo a imagens armazenadas pelo usuário, distintas dos textos, o que torna duvidosa a afirmação de que o uso do aparelho serviria apenas para leitura, já que possível, mesmo em preto e branco, sua utilização como banco de fotos ou álbum de fotografias”, afirmou.

Ao negar provimento ao agravo de instrumento da empresa, os magistrados acrescentaram ainda que o suporte à visualização de animações pelo aparelho afastaria, de forma contundente, a afirmação de que as imagens se refeririam apenas às encontradas dentro de livros digitais. “Isso prejudica o argumento de que o leitor de livros digitais poderia ser equiparado, em suas funções e finalidades, ao livro em papel para fins de gozo da imunidade constitucionalmente prevista”, concluiu o desembargador relator.

Processo: Agravo legal em agravo de instrumento 0030939-50.2014.4.03.0000/SP

Fonte: Tribunal Regional Federal da 3ª Região

Comentário do Dr. Wolf

No meio jurídico, é comum que algumas expressões sejam reiteradamente repetidas a ponto de virarem famosos bordões entre jovens e experientes militantes da advocacia. Chama a atenção, por exemplo, a aparente dicotomia entre duas frases cotidianamente ouvidas nos corredores dos Tribunais: “cada cabeça uma sentença” e “o Direito é a arte da argumentação”. Refiro-me a essa relação como aparentemente dicotômica, tendo em vista a possibilidade de que a argumentação, principal instrumento dos advogados, pode vir a colocar uma sentença (ou decisão) diferente numa “cabeça” (evidente que a do juiz) antes não tanto receptiva a àquela. 

A questão da imunidade do livro eletrônico diz respeito justamente a essa possibilidade. Daí que a discussão a respeito do enquadramento do livro eletrônico na classe de objetos abrangidos pela imunidade dos livros e periódicos tem sido matéria de notáveis estudos doutrinários, visto que passa primordialmente por uma questão de argumentação. 

Sem entrar no mérito da decisão do TRF3 acima noticiada, que considero correta tendo em vista a utilização daquele equipamento eletrônico para outras funções que não apenas de leitura, aproveito esse espaço para expressar minha opinião a respeito da inclusão do livro eletrônico na classe de livros. Isso se deve à seguinte lógica argumentativa: o livro eletrônico é usado como uma espécie de livro, tendo em vista que é um meio, equivalente ao livro, para garantir a liberdade de expressão e de informação. Somado a isso, de acordo com o STF, a imunidade em apreço deveria ser interpretada de acordo com a finalidade que visa a alcançar; assim, o livro eletrônico significa, hoje, aquilo que o livro representou ontem (palavra consagrada na Constituição Federal) . 

Em suma, acredito que a interpretação jurídica, área que, entre outros assuntos, estuda a aplicação da lógica argumentativa, ajuda-nos a compreender o que acontece com o livro eletrônico nesse caso. Na sua essência, o enquadramento desse objeto decorre de uma atualização, em parte tecnológica, da Constituição. O livro, ainda que venha adjetivado de eletrônico, serve ao mesmo propósito do tradicional de papel. Concluo com uma passagem do Prof. Ávila, que muito bem sintetiza a discussão:

“Há mais razões a favor da imunidade dos “livros eletrônicos” do que contra ela: os argumentos sistemáticos contextuais e jurisprudenciais suportam mais enfaticamente a interpretação que inclui o “livro eletrônico” na imunidade dos “livros”; os princípios constitucionais estabelecem como devida a realização da liberdade de comunicação, e a imunidade dos “livros eletrônicos” serve à concretização desse fim; o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal tem ampliado o sentido imediato do dispositivo constitucional que prevê a imunidade dos “livros” sempre que ele seja muito restrito em relação à finalidade a cuja realização ele visa a servir.” .