Código de Defesa do Consumidor

Recentemente, duas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) retomaram a questão sobre a possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em relações empresariais. 
Vejamos as decisões antes de emitir um juízo crítico a respeito da discussão: 

1. “Terceira Turma reconhece aplicabilidade do CDC em contrato de seguro empresarial”.

Em decisão unânime, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor nos contratos de seguro empresarial, na hipótese em que a empresa contrata seguro para a proteção de seus próprios bens sem o integrar nos produtos e serviços que oferece. A decisão foi tomada em julgamento de recurso especial interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

Uma empresa do ramo de comércio de automóveis novos e usados contratou seguro para proteger os veículos mantidos em seu estabelecimento. A seguradora, entretanto, negou a cobertura do prejuízo decorrente do furto de uma caminhonete nas dependências da empresa. 

Segundo a seguradora, a recusa foi em virtude da falta de comprovação de ter havido furto qualificado, já que não havia na apólice a garantia para o sinistro furto simples. A empresa segurada ajuizou ação por quebra de contrato. A sentença, aplicando a legislação consumerista, julgou o pedido procedente, mas o TJSP entendeu pela inaplicabilidade do CDC e reformou a decisão.

Segundo a Corte local, a empresa não poderia alegar que não sabia das condições de cobertura da apólice. Ao segurador caberia apenas cobrir os riscos predeterminados no contrato, não se admitindo interpretação extensiva ou analógica das cláusulas de cobertura. No recurso ao STJ, a empresa insistiu na aplicação do CDC e no reconhecimento de que as cláusulas ambíguas ou contraditórias do contrato de adesão devem ser interpretadas favoravelmente ao aderente.

Afirmou que, ao estipular no contrato que o seguro cobria furto qualificado, a seguradora fez presumir no negócio que cobria também furto simples, “pois quem cobre o mais, cobre o menos". O ministro Villas Bôas Cueva, relator, acolheu a irresignação. Segundo ele, o fundamento de relação de consumo adotado pelo STJ é o de que toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza, como destinatário final, produto ou serviço de determinado fornecedor é consumidor. 

Para o ministro, não se pode confundir relação de consumo com relação de insumo. Se a empresa é a destinatária final do seguro, sem incluí-lo nos serviços e produtos oferecidos, há clara caracterização de relação de consumo. “Situação diversa seria se o seguro empresarial fosse contratado para cobrir riscos dos clientes, ocasião em que faria parte dos serviços prestados pela pessoa jurídica, o que configuraria consumo intermediário, não protegido pelo CDC”, explicou o ministro.

Em relação à cobertura do furto simples, o relator entendeu que, como o segurado (consumidor) é a parte mais fraca da negociação, cabe ao segurador repassar as informações adequadas e de forma clara sobre os produtos e os serviços oferecidos, conforme estabelecido no artigo 54, parágrafo 4º, do CDC.

Segundo o ministro, cláusulas com termos técnicos e de difícil compreensão são consideradas abusivas, e no caso apreciado ficou evidente a falta de fornecimento de informação clara da seguradora sobre os reais riscos incluídos na apólice. “Não pode ser exigido do consumidor – no caso, do preposto da empresa – o conhecimento de termos técnico-jurídicos específicos, ainda mais a diferença entre tipos penais de mesmo gênero (furto simples e furto qualificado), ambos crimes contra o patrimônio”, disse o relator. Com esse entendimento, foi restabelecida a sentença que determinou o pagamento da indenização securitária.

A notícia refere-se ao seguinte processo: REsp 1352419. A notícia foi extraída do site do STJ.

 

2. “STJ entende que empresa pode ser consumidora”.

O Superior Tribunal de Justiça tem aplicado o Código de Defesa do Consumidor em discussões envolvendo apenas empresas. Os ministros ampliaram o conceito de consumidor final, passando a entender que a pessoa jurídica pode ser enquadrada nesta categoria se for vulnerável na relação, mesmo que o produto seja usado como insumo. As discussões sobre o que é insumo também têm tomado a pauta dos ministros. Recentemente, a 3ª Turma analisou processo sobre a compra de um helicóptero pela incorporadora Skipton. A aeronave foi adquirida da Líder Táxi Aéreo para uso da diretoria. 

Nesse caso, entendeu-se que não seria usado na produção. Assim, a Skipton poderia ter ajuizado a ação em Curitiba, onde está sua sede. Ainda cabe recurso. Pelo CDC, ação de responsabilidade civil de fornecedor de produtos pode ser proposta no domicílio do autor. No recurso ao STJ, porém, a Líder defendia que não haveria relação de consumo e que a Skipton não é vulnerável, por ter adquirido um bem de alto valor. Por isso, entendia que o processo teria que ser ajuizado em Belo Horizonte, onde está sua sede, ou no exterior. Em seu voto, o ministro relator Paulo de Tarso Sanseverino afirma que o STJ tem considerado que a pessoa jurídica pode ser consumidora quando adquirir o produto ou serviço como destinatária final, utilizando-o para atender a uma necessidade sua, não de seus clientes. 

"Conforme restou consignado no acórdão recorrido, a aeronave foi adquirida para atender a uma necessidade da própria pessoa jurídica (deslocamento de sócios e funcionários), não para ser incorporada ao serviço de administração de imóveis", diz o relator. Simone Zonari, advogada da Skipton no caso, defendeu a aplicação do CDC. "Por mais que a venda tenha sido para uma empresa, ela era consumidora final", afirma. Já Marcelo Carpenter, advogado da Líder, não vê sentido na aplicação do CDC. "Essa é uma legislação protetora da parte mais fraca. Nesse caso, tem-se uma empresa grande que comprou um avião caríssimo. Não faz sentido aplicar o Código de Defesa do Consumidor", diz. No começo do mês, a 3ª Turma já havia reconhecido a aplicabilidade do CDC em caso em que uma empresa do ramo de comércio de automóveis contratou seguro para proteger os veículos mantidos em seu estabelecimento. 

No processo, a seguradora negou a cobertura do prejuízo decorrente do furto de uma caminhonete nas dependências da empresa. Também há decisões da 1ª e da 2ª Turma nesse sentido. A ministra Nancy Andrighi, da 3ª Turma, em voto proferido no fim de 2012, afirma que a jurisprudência do STJ se encontra consolidada no sentido de que a determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. 

E que agora está evoluindo para uma "aplicação temperada da teoria finalista". Essa evolução significa a admissão, em determinadas hipóteses, de que uma empresa que compra um produto ou serviço pode ser equiparada à condição de consumidora por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade - "que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo", segundo a ministra. Com base nesse entendimento, a 3ª Turma permitiu que uma costureira utilizasse o Código de Defesa do Consumidor. No caso, ela reclamava contra uma cláusula do contrato com a fabricante de máquinas de costura que elegia o foro de São Paulo, sede da empresa, para resolver eventuais controvérsias. A costureira, moradora de Goiânia (GO), havia comprado a máquina de bordado em 20 prestações. 

De acordo com Bruno Bóris, professor de direito do consumidor na Universidade Mackenzie, o STJ vem aplicando a corrente da "teoria finalista aprofundada". De acordo com essa teoria, para a empresa ser considerada consumidora é necessário haver uso próprio do bem adquirido - e não como insumo na produção - ou a vulnerabilidade na relação com o fornecedor. Essa questão, porém, não deve ser analisado por meio de recurso repetitivo, segundo Vinicius Zwarg, especialista em direito do consumidor. "É preciso avaliar cada caso", diz.

Fonte: Valor Econômico.

 

No contrato de seguro, a seguradora presta garantia contra riscos determinados (art. 757, do Código Civil ). Assim, se o risco está coberto na apólice, então está coberto; se não está, então não está. Observe que a especificação dos riscos assumidos é imprescindível para o cálculo do prêmio e para a equação econômica do contrato, o que significa dizer que admitir indenização fora dos casos expressamente previstos na apólice significa impor à seguradora algo que ela simplesmente não quis, uma obrigação que ela jamais assumiu e que não está contemplada na sua remuneração.

Penso que o fato do contrato de seguro ser altamente standardizado (a apólice é oferecida em massa), no caso do contrato de seguro, que necessita de delimitação muito especificada dos riscos, contribui para objetivar a interpretação do mesmo, de modo que a prática reiterada no mercado consolida a interpretação. Penso que o acórdão do STJ que falou do furto simples desconsiderou isso.

Mas eu vou além. Digo até que o mercado de seguros se sustenta justamente na crença de que não haverá interpretação extensiva de suas cláusulas: é algo ditado pela natureza do negócio. Se a seguradora diz que garante contra furto qualificado, contando que a chance do furto qualificado ocorrer é 1%, e aí o STJ vem e diz que deve ser coberto também o furto simples, cujo risco de ocorrência é 50%, então o cálculo dos prêmios que o segurado aplicou em todas as apólices iguais àquela está errado, a seguradora opera a pleno prejuízo e a falência bate à porta. E a razão disso é que a seguradora nunca conseguirá saber quais os riscos que ela efetivamente assumiu. Daqui a pouco ela assume risco contra explosão e o STJ determina que ela indenize incêndio provocado por uma vela acesa.

Sobre a natureza de consumo. 

Confesso que não conheço bem essas teorias finalistas aprofunda e moderada. O que me parece é que quem compra um helicóptero claramente não é vulnerável (nas poucas vezes em que vi alguém comprar ou fazer leasing de aeronave sempre tinha um monte de advogados e consultores no meio. Mas mesmo que não tivesse essa consultoria, alguém que compra um bem tão caro e incomum não merece ser considerado vulnerável, pelo poder econômico que a parte dispõe).

Penso que o fato de ser pessoa jurídica (PJ) por si só não significa ausência de relação de consumo.

Eu poderia imaginar algo no sentido da empresarialidade da PJ indicar ausência de vulnerabilidade, valendo dizer que o fato de ser empresária impõe o ônus de se cercar de maiores cuidados na contratação do seguro. Mas isso é uma questão que envolve mais o tema da interpretação de contratos empresariais.

De qualquer modo, penso que mesmo em relação de consumo a interpretação não deve ser estendida, sob pena de inviabilizar o mercado de seguros. Ou se for estendida, deve ser em bases extremamente estritas.