Limites para a formação de um Estado de Direito: a quem serve o Estado?

“A real vantagem da verdade consiste em que, quando uma opinião é verdadeira, pode-se extingui-la uma, duas ou inúmeras vezes, mas ao longo dos anos se encontrarão pessoas que tornem a descobri-la, até que uma de suas reaparições ocorra numa época em que, graças a condições favoráveis, escapa à perseguição, avançando de modo tal que resista a todas as tentativas subsequentes de suprimi-la”.

JOHN STUART MILL, A Liberdade, p. 46.

 

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, consagrou, como Direitos e Garantias Fundamentais, Direitos de Liberdades e Direitos Sociais. Os Direitos de Liberdades estão no Capítulo I, artigo 5º e todos os seus 78 incisos. Não é por acaso que o constituinte de 1988 dedicou tal extensão aos Direitos de Liberdades: essa Constituição é conhecida como o “contrato social da redemocratização”  . Isso se deve ao longo período em que o país foi conduzido por regimes autoritários em que a liberdade não era um Direito Fundamental, mas um direito com efeitos modulados.

Os Direitos de Liberdades, em linhas gerais, são aqueles Direitos da pessoa enquanto fundamento e princípio do Estado. Em específico, compreendem o direito de ir e vir, o direito à liberdade de pensamento, à privacidade, à liberdade religiosa, entre outros. Nesse sentido, entende-se que tais Direitos de Liberdades, junto à segurança jurídica, são prerrogativas fundamentais e irredutíveis dos seres humanos enquanto indivíduos que vivem sob a égide de um Estado de Direito. Conclui-se, portanto, que a República Federativa do Brasil decidiu, através da sua Constituição, estabelecer um Estado de Direito.

Para JOHN STUART MILL, filósofo inglês do século XIX, “a luta entre Liberdade e Autoridade é o traço mais evidente nos períodos históricos com que nos familiarizamos desde cedo, particularmente na Grécia, Roma e Inglaterra” . A diferença para os dias de hoje é que a luta se dá não mais entre um camponês contra um tirano, um plebeu contra um Imperador opressor, ou um súdito contra um Rei despótico. Sob as vestes da Democracia, perseguidores fantasiados de governantes alternam-se na escolha de alvos para legitimação e afirmação do seu poder.

Também no século XIX, o filósofo francês, ALEXIS DE TOCQUEVILLE, ao analisar a estrutura sociopolítica norte-americana, após viagem aos Estados Unidos, frisa a possibilidade de, mesmo em uma Democracia, ocorrer a supressão de Liberdades individuais, em favor de uma “tirania da maioria” , que seria originada justamente a partir de efeitos colaterais da democracia. Ainda no tema, TOCQUEVILLE afirma que essa “tirania da maioria” teria como consequência a “escravização da própria alma”, no sentido da redução de alguns indivíduos para a consagração do bem da maioria.

Exemplo recente e lamentável de supressão da liberdade de indivíduos é a crescente perseguição religiosa, em especial, antissemita que vem ocorrendo no Brasil. O caso é ainda mais estarrecedor quando, avaliados os fatos inclusive reportados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos , percebe-se que membros do alto escalão de autarquias federais, órgãos de Polícia e do Judiciário estão envolvidos na tentativa de oprimir e reduzir à miséria a vida de judeus que residem no Brasil.

A origem da perseguição antissemita não está, infelizmente, nos dias de hoje. A história comprova que, há centenas de anos, o povo judeu vem sofrendo com hostilidade e ódio. Exemplos conhecidos como as perseguições na Primeira Cruzada, em 1096, e no massacre realizado pela Alemanha nazista e seus aliados, durante a II Guerra Mundial, entre 1940 e 1945, conhecido como Holocausto, denotam a antiga intolerância com o povo judeu. 

Constatado esses fatos e a partir dessas leituras dos filósofos mencionados, reflete-se a respeito das relações entre a necessidade de se estabelecer um Estado de Direito, a fim de evitar o autoritarismo de uma tirania, mas ao mesmo tempo, proteger os direitos de liberdades dos indivíduos de uma democracia?

A resposta está no respeito à individualidade, sem a qual não é possível ter uma vida valiosa. Dessa forma, um Estado de Direito está limitado a não exercer nada que possa afetar a existência de um indivíduo. Como afirma J. Stuart Mill, “o limite entre a independência individual e o controle social é imprescindível para a sociedade se desenvolver bem” . 

Não se pode desenvolver um Estado de Direito sem respeito ao maior princípio fundamental do ser humano: sua liberdade. O Estado, como diz Thomas Hobbes , filósofo do século XVII, existe para proteger o indivíduo, visto que o “homem é o lobo do homem”. Logo, esse Estado nunca pode ultrapassar o limite da individualidade da pessoa, pois seria como legitimar algo que ele mesmo foi criado para proteger. 

Dessa forma, uma vez que a “intolerância é um traço da condição humana, e não está restrita, visto que é universal” , cabe ao Estado proteger os Direitos de Liberdades, dentre os quais, a liberdade religiosa está contido. Toda ação contrária à tutela da liberdade religiosa, como a prisão por manifestações religiosas, o confisco de bens, a denegação à imagem, a violência física e emocional, amparadas inconstitucionalmente em alegação obscuras que, ao final, descobriram-se antissemitas, devem ser veementemente repudiadas e punidas.

Esse texto tem como objetivo confirmar a necessidade de termos um Estado de Direito. Consequentemente, repisamos que a função desse Estado de Direito deve ser de proteger os Direitos de Liberdades elencados na Constituição Federal e nos Tratados de Direitos Humanos assinados pelo Brasil. Infelizmente, tendo em vista os casos de perseguição antissemita ocorridos recentemente, lamentamos o desrespeito ao limite fundamental e básico dos indivíduos, motivo pelo qual justamente o Estado existe, a liberdade individual.

Entender a quem serve essa forma de Estado é pergunta que nunca se deveria precisar fazer, pois num Estado de Direito não há alvos a serem perseguidos, mas pessoas a serem protegidas.

  P. 11.

  Leviatã, capítulo XIV.

  CASTORIADIS, Cornelius.