Primeiras notas sobre a tensão entre “Vício transrescisório v. Segurança jurídica”

A relação entre o Direito e o tempo revela-se importante na medida em que o ordenamento jurídico preocupa-se com a duração dos efeitos dos atos jurídicos na vida dos cidadãos. É da tensão entre “tutela efetiva dos direitos” v. “dormientibus non sucurrit jus” (“o Direito não socorre os que dormem”), por exemplo, que surgem normas de prescrição e decadência para aqueles que não se adiantam a reclamar seus direitos.

É também de uma tensão, mas está entre a “tutela efetiva dos direitos” v. a “coisa julgada” que surgem normas de estabilidade no processo civil, a fim de não prejudicar a proteção de direitos tutelados pelo ordenamento. Jorge Luiz Borges disse: “...la eternidad, cuya desde dazada cópia es el tiempo”, assim, se nem o tempo confunde-se com a eternidade, também não poderia confundir-se com ela o processo judicial.  

Todavia, ainda que o Direito exista para estabelecer a ordem nas relações humanas, haja vista que os cidadãos não podem viver, nem exercer sua liberdade sem o mínimo de ordem, há ferramentas jurídicas que existem para evitar que a ordem emanada do Direito seja injusta e assim se manifeste eternamente. 

Assim é, por exemplo, que uma decisão judicial existente pode ser impugnada por dois meios, o recurso e a ação rescisória, tanto em razão de errores in procedendo, como de errores in iudicando. Com isso, é possível discutir a validade ou a justiça de uma sentença. O recurso, no entanto, serve para discutir uma decisão judicial dentro de um processo, antes do trânsito em julgado da sentença. Já a ação rescisória é o meio de impugnação para desconstituir coisa julgada material no prazo de dois anos.

Possível ainda, e o que nos interessa em especial nesse texto, uma terceira hipótese para se desafiar a estabilidade do Direito: o vício transrescisório. 

Nas palavras do Prof. Freddie Didier Jr.: 

“no direito processual brasileiro há duas hipóteses em que uma decisão judicial existente pode ser invalidade após o prazo da ação rescisória. É o caso da decisão proferida em desfavor do réu, em processo que correu a sua revelia, quer porque não fora citado, quer porque o fora de maneira defeituosa (art. 475-L, I e art. 741, I, CPC). Nestes casos, a decisão judicial está contaminada por vícios transrescisórios.” (DIDIER JR., Fredie, CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil, vol.3, 9ª ed. Salvador: Editora Juspodvim, 2008, p. 455, 456 e 457). 

Perceba-se que as hipóteses apontadas pelo Prof. Freddie para a configuração dos chamados “vícios transrescisórios” são taxativas: referem-se tão e unicamente a falhas na citação do réu, sem mencionar qualquer hipótese de falta de intimação. 

Daí que, a título de exemplo, no AgRg no Recurso em Mandado de Segurança nº 22.764 - MS (2006/0208328-4), o Min. Paulo Furtado decidiu que:

 “não cabe mandado de segurança para impugnar ato judicial já transitado em julgado, visando à sua rescisão (Enunciados nº 267 e 268 da Súmula do Supremo Tribunal Federal). Isso porque, não se tratando dos denominados vícios transrescisórios, a falta de impugnação oportuna quanto ao defeito de intimação da parte gera preclusão, somente atacável pela via rescisória, no prazo respectivo.”.

Assim é que, em sendo o caso, a desconstituição da sentença eivada de vício transrescisório dar-se-á mediante a ação de querela nullitatis, ação de nulidade com hipótese de cabimento restrita, além de ser imprescritível, devendo ser proposta perante o juízo que proferiu a decisão. 

Nesse sentido a orientação jurisprudencial do STJ, como se infere dos seguintes precedentes, verbis: 

"PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. CITAÇÃO. CONFRONTANTE. AUTOR. RESCISÓRIA. DESCABIMENTO. 1 - Se o móvel da ação rescisória é a falta de citação de confrontante (ora autor), em ação de usucapião, a hipótese é de ação anulatória (querella nulitatis) e não de pedido rescisório, porquanto falta a este último pressuposto lógico, vale dizer, sentença com trânsito em julgado em relação a ele. Precedentes deste STJ. 2 - Recurso conhecido em parte e, nesta extensão, provido para decretar a extinção do processo rescisório sem julgamento de mérito (art. 267, VI do CPC)." (4ª Turma, REsp n. 62.853/GO, rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU de 01.08.2005).

Dito isso, consequências importantes devem ter sido notadas pelo leitor, em especial tendo em vista a atual tendência institucional brasileira de fazer reverberar essa teoria sem maiores reflexões e críticas a respeito dos seus efeitos negativos no nosso sistema jurídico. 

Em primeiro lugar, quando falamos de vícios transrescisórios, em verdade, estamos falando de apenas um vício. Isso porque, o único vício que há é, quando ao final da demanda transitada em julgado se percebe que a citação do réu foi nula ou inexistiu, ou seja, não se instaura a relação processual composta entre juiz e réu. Dessa forma, não há que se falar em vícios, mas apenas em um único vício, devendo esse estar relacionado com a inexistência da citação do réu.

Em segunda análise, é importante atentar para a natureza do vício transrescisório. Note-se que se a sentença for favorável ao réu que não foi citado, a invalidação não será possível por carecer de prejuízo que dê azo à ação em questão. Também é importante perceber que, se o réu, apesar de não ter sido citado, não for revel por ter comparecido espontaneamente, não caberá a querela nullitatis.

É com essas reflexões aliadas ao uso das lentes da segurança jurídica, pressuposto basilar do nosso Estado Democrático de Direito, que pretendemos analisar o instituto processual dos vícios transrescisórios. 

Ademais porque, à luz do ensinamento de LIEBMAN (in Estudos sobre o Processo Civil Brasileiro), é

 “a falta de citação inicial é o maior de todos os vícios do processo e é o único caso que sobrevive nos nossos dias em que todo e qualquer processo é adequado para constatar e declarar que um julgado meramente aparente é na realidade inexistente e de nenhum efeito. A nulidade pode ser alegada em defesa contra quem pretende tirar da sentença um efeito qualquer; assim como pode ser pleiteada em processo principal, meramente declaratório”. 

Ora, não pode essa força que decorre do vício transrescisório ser simplesmente “passada” como se fosse um vírus para outras questões de Direito que não aquelas previstas em lei, qual seja, de inexistência da citação. Assim, caso a citação tenha ocorrido validamente, não há que se falar em vício transrescisório por falta de intimação para praticar atos no curso do processo. Nessa ocasião, não se anula o processo, mas pode-se repetir a intimação para o ato ser praticado. 

De conformidade com o que se está afirmando, o voto do Ministro Luiz Fux, relator no REsp 6670002-DF, assim ementado:

“3. Em regra, a eficácia preclusiva do julgado não admite que a parte executada renove, no processo de execução, mesmo que em sede de embargos do devedor, matérias atinentes ao processo de cognição, excetuando-se, tão-somente, a hipótese de falta de citação no caso de revelia (art. 741, inciso I, do CPC), na qual os embargos revelam nítido caráter rescindente.

4. A coisa julgada é instituto servil à segurança jurídica, por isso que a lei se incumbiu de definir o momento a partir do qual ela acoberta a decisão tornando-a ao abrigo das impugnações e dos recursos. Inimpugnada uma decisão, ela se reveste da auctoritas res judicata e não pode sequer ser atingida por lei nova, e a fortiori infirmada, como pretende a recorrente, por petição encartada nos autos do processo de execução, após o trânsito, inclusive, da sentença de liquidação e daquela proferida em sede de embargos do devedor, máxime depois de transcorrido in albis o prazo para a propositura da eventual ação rescisória.

5. In casu, as alegações de incompetência do juízo e de nulidade absoluta de ato processual, a despeito serem questões apreciáveis de ofício pelo juiz em qualquer tempo e grau de jurisdição (CPC, art. 113), haveriam de ser analisadas antes do trânsito em julgado da decisão, momento a partir do qual restou à parte interessada tão somente o ajuizamento da rescisória, revelando-se inadequada a via dos embargos à execução e, mais ainda, a da apresentação posterior de simples petição, tanto mais que tema decidido pelo STJ e STF em decisão transita.

(...)

14. Destarte, as alegações da União esbarram na eficácia preclusiva do julgado encartada no art. 473 do Código de Processo Civil, exceção feita à devida correção do cálculo, por expressa determinação da Lei n.º 9.494/97.

15. Recurso especial parcialmente provido para, tão-somente, determinar sejam refeitos os cálculos do precatório em questão, dos quais há de ser excluída a taxa ANBID, devendo ser-lhes aplicado os índices legais de correção e juros de mora".”. 

Logo, percebe-se da ementa acima transcrita que o vício transrescisório só ocorre em casos de inexistência da citação do réu, caso contrário não há falar em nulidade do processo.

Por fim, resta lembrar que da mesma forma que a ação rescisória tem as hipóteses de cabimento elencadas taxativamente no art. 485, do CPC, a revisão do julgamento para anulação da coisa julgada deverá observar os parâmetros igualmente taxativos dos arts. 475-L, I e art. 741, I, CPC, antes mencionados. Decretar vício transrescisório por suposta falta de intimação, em demanda que atingiu o estagio da coisa julgada, com rescindibilidade ultrapassada, para anular o feito e violar a garantia constitucional da coisa é atentar contra a segurança jurídica, o Estado de Direito e, porque não dizer, a própria democracia, que no Estado de Direito o deu pilar maior de sustentação.

Ademais, além de desafiada a segurança jurídica, estar-se-ia desconstruindo o próprio Direito e, nos termos da doutrina moderna, enfraquecendo a sua função primordial que é justamente de manter e estabilizar a ordem na convivência humana, a fim de que todos possam exercer suas liberdades e seus direitos (LON L. FULLER, The Morality of Law).